
Nos últimos anos, o agronegócio brasileiro tem vivido um paradoxo revelador: recordes de produção e exportação, de um lado, e uma crise econômico-financeira, silenciosa e profunda, de outro. Em 2023, o país colheu mais de 320 milhões de toneladas de grãos e exportou US$ 166 bilhões, consolidando o setor como responsável por cerca de 24% do PIB nacional. Ainda assim, produtores rurais de todo o país enfrentam um cenário adverso, marcado pela queda nos preços das commodities, elevação dos juros, valorização do dólar e eventos climáticos extremos, como secas e enchentes.
Essa combinação de fatores provocou um efeito cascata que afetou gravemente o caixa de muitos empresários rurais, especialmente os pequenos e médios produtores. As margens, antes confortáveis, foram severamente impactadas. A inadimplência cresceu, e com ela, a busca por soluções jurídicas capazes de preservar a atividade econômica.
Nesse contexto, o remédio jurídico da recuperação, judicial ou extrajudicial, vem sendo cada vez mais utilizado como um instrumento legítimo de reestruturação e continuidade da atividade produtiva empresarial, inclusive no campo. Segundo levantamento da Serasa Experian, o número de pedidos de recuperação judicial por produtores rurais cresceu mais de 500% entre 2022 e 2023, e o movimento continua acelerado: 287 produtores já ingressaram com pedidos de recuperação judicial apenas entre janeiro e setembro de 2024, contra 77 no mesmo período do ano anterior.
Esse crescimento não pode ser lido de forma alarmista. O problema não está no número de ações ajuizadas, mas sim na gravidade da crise econômico-financeira que afeta o setor agropecuário. O aumento dos pedidos reflete, sobretudo, a intensificação das dificuldades no campo, agravadas por fatores macroeconômicos e climáticos. Além disso, revela o amadurecimento institucional da aplicação da Lei n. 11.101/05, que passou a ser corretamente compreendida como instrumento de proteção da atividade empresarial viável e não como vilanização do devedor.
Infelizmente, o debate público sobre o uso da recuperação judicial no campo ainda sofre com narrativas simplistas, em que tudo que foge da normalidade contratual é tratado como suspeita de fraude. Esse raciocínio ignora a essência do instituto e, mais grave, despreza os próprios fundamentos econômicos da insolvência. A teoria da insolvência moderna reconhece que empresas viáveis podem atravessar crises de liquidez temporária, sem que isso implique má-fé ou quebra definitiva. O papel do processo de reestruturação, então, é justamente avaliar, em ambiente judicialmente controlado e transparente, a viabilidade da superação da crise, com ampla e efetiva participação dos credores, a fiscalização do Administrador Judicial, do Ministério Público e controle de legalidade do Poder Judiciário.
Vale lembrar que a Lei n. 14.112/20 não apenas atualizou dispositivos importantes da recuperação judicial, como também fortaleceu as garantias dos credores. É comum que se critique a legislação sob a falsa premissa de que ela protegeria exclusivamente o devedor. Ao contrário: o novo modelo ampliou o arsenal dos credores, permitindo, por exemplo, a apresentação de plano alternativo em caso de rejeição do plano apresentado pelo devedor, além de reforçar a transparência, prever mecanismos de medição prévia e facilitar a fiscalização patrimonial. O sistema é equilibrado e foi desenhado para proteger a função social da empresa, mas também para punir comportamentos oportunistas e desleais, sempre que detectados, dentro do devido processo legal.
O próprio legislador já reconheceu a legitimidade da aplicação da recuperação judicial ao produtor rural, especialmente com a reforma promovida pela Lei n. 14.112/20. A partir dessa mudança, admitiu-se expressamente que o produtor rural pessoa física pode requerer recuperação judicial sem a necessidade de prévio registro na Junta Comercial, desde que comprove a exploração regular da atividade por ao menos dois anos, inclusive por meio do Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR) e outros documentos. A jurisprudência, por sua vez, caminha para pacificar os critérios de aferição do exercício empresarial rural. Os tribunais têm compreendido que o foco deve estar na realidade econômica da atividade, não apenas na sua formalização cartorial. Esse movimento fortalece a segurança jurídica do setor e consolida um caminho mais acessível para o produtor rural que precisa de reestruturação séria e responsável.
Outro fator que empurra o produtor para a recuperação judicial é a falta de instrumentos extrajudiciais eficazes de renegociação de dívidas. O sistema de crédito rural no Brasil é notoriamente rígido. Apesar de conceder financiamento em larga escala, as instituições financeiras ainda enfrentam limitações operacionais e regulatórias para reestruturar contratos em massa, sobretudo em épocas de crise. A recuperação judicial, nesse cenário, se impõe não como uma escolha, mas como última alternativa para forçar o diálogo e suspender execuções, preservando o mínimo de previsibilidade para o reequilíbrio da operação.
Uma importante confirmação dessa visão amadurecida do sistema veio recentemente quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 2.186.055, consolidou uma posição decisiva: o depósito judicial do valor inadimplido pode elidir o pedido de falência fundamentado no descumprimento do plano de recuperação judicial. O precedente reforça a lógica da preservação da empresa como princípio estruturante do sistema de insolvência brasileiro. No agronegócio, onde os ciclos de caixa dependem de variáveis externas e imprevisíveis, a possibilidade de corrigir um atraso pontual mediante depósito judicial pode representar a diferença entre a sobrevivência e a liquidação de um projeto econômico saudável.
A recuperação judicial não pode ser o único caminho para salvar empresários rurais em crise. É hora de pensar em soluções integradas de política pública: melhorar os instrumentos de mediação extrajudicial, flexibilizar a regulação para reestruturação do crédito rural e promover ações coordenadas entre bancos públicos, cooperativas, Judiciário e produtores. O setor produtivo do campo precisa ser visto não como risco sistêmico, mas como ativo estratégico da economia nacional. Preservar uma empresa rural vai muito além do interesse do devedor. Significa garantir empregos no interior, abastecimento de alimentos, arrecadação de tributos e estabilidade cambial com exportações constantes. Quando o Estado, por meio da lei e da jurisprudência, age para proteger a atividade empresarial em crise, toda a sociedade colhe os frutos dessa decisão, seja no campo ou na cidade.
* Breno Augusto Pinto de Miranda é advogado especialista em reestruturação empresarial. Conselheiro Federal da OAB e Presidente do IBAJUD